EPIC People Brasil
10 min readAug 22, 2022

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Antro-Visão: Uma Nova Forma de Enxergar nos Negócios e na Vida

Resenha escrita por SIMON ROBERTS, Stripe Partners
Anthro-Vision: A New Way to See in Business and Life, escrito por Gillian Tett (1)

Ulf Hannerz certa vez propôs que:

“O senso comum é cultural, ‘negócios, como de costume’; um procedimento operacional padrão, uma perspectiva em repouso” (127).

O jornalismo de Gillian Tett perturba as perspectivas em repouso. Se há uma mensagem simples para o leitor comum em seu novo livro, Anthro-Vision (em tradução livre, Antro-Visão), é isto: a promessa e o valor da antropologia está em tornar visível o que está próximo mas que é ignorado. Ela oferece um meio de ver o mundo de forma diferente.

Há também uma mensagem para aqueles cujo trabalho envolve a aplicação do pensamento antropológico ou etnográfico: devemos revisitar nossas próprias suposições sobre como concebemos e comunicamos nosso valor. O livro é um retumbante chamado às armas em um mundo assolado por uma “visão estreita como um túnel”.

Qual é a base e mensagem de Tett?

O escritor russo Viktor Shklovsky sugeriu que um papel da arte “é tornar o ‘invisível’ propriamente ‘visto’ e promover a ‘desfamiliarização’, para vermos o que normalmente perdemos” (223). Tett vê a antropologia de maneira semelhante: é uma lente cultural que desafia nossas suposições, dando-nos nova visibilidade para tudo, desde tomar café da manhã até derivativos complexos. Anthro-Vision é um convite para que um público mais amplo adote as perspectivas distintas da antropologia para dar sentido ao mundo. Ao apresentar o trabalho exemplar de especialistas (incluindo muitos membros do EPIC) que exercem seu ofício antropológico em uma ampla gama de problemas sociais e de negócios, Tett apresenta um argumento poderoso para os leitores que são novos nesse campo.

Para profissionais experientes, Anthro-Vision oferece uma linguagem e frameworks que aproxima espaços de pesquisa corporativos, sem fins lucrativos, públicos e acadêmicos. O livro de Tett convida especialistas antropológicos a ver nosso próprio trabalho como familiar e estranho, examinar nossos próprios pontos cegos e atualizar nossas ideias sobre o valor que criamos ao colaborar uns com os outros. Anthro-Vision nos lembra que a tarefa de comunicar o que fazemos, e o valor que isso traz, está longe de estar completa.

Tett argumenta que as ações do setor da Tecnologia estão supervalorizadas na Wall Street Week, onde ela é uma colaboradora regular (esquerda); em vídeo explicativo do Financial Times sobre ESG — Governança Ambiental, Social e Corporativa (centro); em Davos discutindo a evolução da confiança desde a crise financeira (à direita).

Tett é decana da antropologia orientada ao público. Ao longo de uma longa carreira no Financial Times, ela aproveitou sua formação em antropologia para uma posição central no mundo das finanças e do jornalismo. Ao desafiar o que é dado como certo, Tett conseguiu antecipar questões e dar voz a espaços caracterizados pelo silêncio social. Ela consistentemente credita sua formação antropológica em Cambridge e no campo no início da década de 1990 no Tajiquistão, por essa perspectiva valiosa e diferenciada.

Os locais de campo de Tett no Financial Times costumam ser áreas obscuras e negligenciadas na alta finança. Justamente elogiada por identificar o cataclismo iminente que a inovação financeira desenfreada criaria em 2007/2008, Tett é divertida e honesta ao relatar o longo período de trabalho de campo que a ajudou a ver o que as outras pessoas estavam deixando passar e as dificuldades que ela inicialmente enfrentou para transmitir sua mensagem. Ela é especificamente generosa também em sua forma de tratamento a outros estudiosos, como Daniel Beunza, Patricia Ensworth e Karen Ho, que trilharam caminhos semelhantes em criar clareiras nas matas de Wall Street. Esta história é contada de forma mais completa em seu livro Fool’s Gold (2009, sem tradução para o português), provavelmente o relato definitivo sobre o que antecedeu a crise financeira global, mas em Anthro-Vision a narrativa é de se conectar a um espaço complexo no qual as práticas financeiras e culturais estavam escondidas sob um verniz de terminologias desconhecidas e um ofuscamento quase intencional. Como Tett frequentemente lembra o leitor, isso não é muito diferente de tentar entender as práticas de casamento tadjique: trata-se de tornar o estranho familiar e o familiar estranho.

São evidentes as virtudes de uma paciente compreensão e da adoção cuidadosa de uma perspectiva de dentro para fora. Tett tem a sorte de ter acesso às reuniões sagradas da elite empresarial e financeira do mundo, sejam as do Banco Mundial ou em um povoado nas montanhas suíças. (Não são muitos os antropólogos a quem Alan Greenspan, ex-presidente da Reserva Federal dos EUA, pede para recomendar monografias etnográficas). No entanto, seu ofício é familiar (e laborioso) para aqueles que de nós o praticam; pesquisa incansável, pacientemente ligando os pontos para enxergar o quadro completo, usando uma lente antropológica para dar sentido ao que vê e comunicando cuidadosa e estrategicamente suas descobertas.

E, nas melhores tradições da antropologia engajada, ela fala a verdade ao poder. Sua mensagem sobre os perigos iminentes do mundo financeiro que estavam acontecendo embaixo da água foi amplamente denunciada quando ela os levantou em Davos em 2007. Mas ela persistiu. O resto é, infelizmente, história.

Anthro-Vision não é um livro de memórias, embora tenha um arco biográfico evidente. Ulf Hannerz observou que o acaso muitas vezes desempenha um papel importante na forma como o trabalho da vida de um antropólogo se desenrola, e isso tem sido verdade para Tett. Ela também compartilha com Hannerz um compromisso com a antropologia multi-situada, uma abordagem cada vez mais vital em um mundo caracterizado por fluxos culturais e informacionais possibilitados pela tecnologia, mídias sociais e movimento de capital e pessoas. A natureza ilimitada das culturas contemporâneas, sugere Tett, torna nosso empreendimento mais urgente e exige inventividade na forma como realizamos nosso trabalho.

Tett frequentemente se baseia em seu próprio trabalho, mas ela é generosamente ecumênica ao apresentar um amplo grupo de profissionais ao longo do século passado. Muitos são nomes conhecidos na comunidade EPIC, cuja conferência anual Tett frequenta regularmente e que, eu acredito, representa uma escolha criteriosa de local de campo! O livro contém uma lista necessariamente parcial de nomes EPIC e os estudos de caso que chamaram a atenção curiosa de Tett.

Entre as palestras da EPIC destacadas em Anthro-Vision estão Educating the Educators, de Meg Kinney (esquerda) e Hal Phillips; AI among Us, de ken anderson (centro) et al; e Fighting Conspiracy Theories Online at Scale, de Rebekah Park (à direita) et al.

Embora sua intenção não seja escrever a história da evolução da antropologia nos negócios, algo que poderia ter tornado Anthro-Vision um assunto mais paroquial, é possível ver os desdobramentos da evolução da disciplina nos negócios ao longo das páginas. Seu relato representa um grande passeio pelos principais locais e becos menos conhecidos da antropologia nos negócios ao longo do século XX: Hawthorne, os mundos da publicidade e do marketing de CPG, empresas de tecnologia do Vale do Silício, o trabalho central de Lucy Suchman e Julian Orr na Xerox PARC e o envolvimento da disciplina com big data e IA. Ao longo do caminho, há relatos convincentes de pesquisas etnográficas na General Motors e antropólogos moldando a compreensão do surto de Ebola. Ao longo do livro, Tett desenvolve um entendimento sobre diversas aplicações e relações. Há uma história de crescimento e amadurecimento aqui, mas não é inocente.

A Intel se destaca fortemente. No entanto, Tett se esforça para observar que esta história tem um desfecho inesperado. A Intel deixou de ser a garota-propaganda da antropologia na indústria, com patrocínio de executivos seniores, ondas de contratação e orçamentos que sustentavam um trabalho exploratório ambicioso e de longo prazo, para ser uma comunidade fragmentada com influência mais parcial nos negócios. Não se trata de apontar dedos, mas de reconhecer, como ela faz, que o progresso pode ser revertido. O trabalho etnográfico leva tempo, recursos e vontade organizacional — e, muitas vezes, generosidade executiva.

Embora os jornalistas (geralmente) não sejam cientistas sociais e as profissões e práticas sejam distintas, há um terreno comum e, infelizmente, uma luta comum: “O melhor jornalismo é feito quando os repórteres têm espaço, tempo, treinamento e incentivos para fazer perguntas como ‘O que não estou vendo nestas manchetes?’… Mas já é difícil o suficiente fazermos tais perguntas quando os recursos são abundantes. É duplamente difícil quando há recursos escassos” (151).

Apoiando-se em Pierre Bourdieu — como faz ao longo do livro — Tett nos lembra que “os efeitos ideológicos mais bem-sucedidos são aqueles que não precisam de palavras e não pedem mais do que um silêncio cúmplice”. Essa é uma mensagem que incendeia a comunidade EPIC. Em algum nível, as oportunidades de trabalho sob a bandeira da etnografia e da antropologia parecem estar crescendo, por exemplo, em áreas como UX e pesquisa em design. Mas advogar pela etnografia — pelo rigor, tempo, dinheiro e comprometimento organizacional para fazê-lo bem — é tão vital como sempre foi. A resignação diante das tentativas de minar nosso valor não será o suficiente.

Felizmente, em Gillian Tett temos uma defensora que nos dá muitos exemplos de impacto, sucesso e esperança. E há muita esperança, pois este é um livro que traz um argumento convincente para o valor da antropologia nos negócios e muito além. Para aqueles que sentem que lutam para demonstrar seu valor, tenho uma recomendação simples: compre uma cópia para você e dê uma para seu chefe ou cliente também.

Se há uma repetição em Anthro-Vision é sobre a ampla aplicabilidade e a aptidão evolutiva da antropologia. À medida que Tett percorre o trabalho dos antropólogos (e daqueles que adotam suas ferramentas e teorias) ao longo do tempo e em uma ampla gama de contextos, ela nos lembra da distinção e flexibilidade da disciplina, e a tenacidade dos profissionais em descobrir novos campos, fenômenos e colaborações. Portanto, embora a história da Intel seja desanimadora, também vale a pena comemorar. O surgimento de novos empreendimentos ambiciosos, como a fundação de um Instituto 3a na Escola de Cibernética da ANU liderado pelos ex-alunos da Intel Genevieve Bell e Alex Zarigoflu, iniciativas como Data and Society e a próspera comunidade EPIC não são nada mais do que expressões ambiciosas de uma disciplina aberta ao renascimento, experimentação e envolvimento, de mangas arregaçadas, com questões contemporâneas importantes.

Em The Silo Effect (2015, sem tradução para o português), Tett alertou sobre as armadilhas do pensamento e da prática em silos, por isso não surpreende que ela use Anthro-Vision para defender o que pode ser chamado de antropologia combinacional. Modelos lineares, “limpos — delimitados — são guias de navegação pobres neste mundo; precisamos de visão lateral — não estreita como um túnel” (231). A antropologia, ela argumenta, tem um papel a desempenhar, complementando e interrogando outras perspectivas e trabalhando com outras disciplinas. Como consequência, “os antropólogos precisam se tornar mais colaborativos, ambiciosos, flexíveis e imaginativos” (234). Se o fizerem, poderão contribuir cada vez mais significativamente em um mundo caracterizado pelo VUCA (Volatilidade, Incerteza, Complexidade e Ambiguidade).

Então, o que, exatamente, Tett acredita que a antropologia e a prática etnográfica trazem para o que John Seely Brown chama de “mundo de água branca” (tradução livre)? Ela afirma isso de forma tão simples e sucinta que vale a pena citar na íntegra:

1. Cultivamos uma mentalidade de empatia por estranhos e valorizamos a diversidade

2. Ouvir a opinião de outra pessoa, ainda que “estranha”, não ensina apenas empatia pelos outros; também torna mais fácil enxergar a si mesmo

3. Abraçar esse conceito estranho e familiar nos permite ver pontos cegos nos outros e em nós mesmos (xiii e xiv).

Os puristas acadêmicos podem achar isso muito simples ou mesmo simplista. Este não é, obviamente, um livro acadêmico. Dito isso, há uma mensagem para os puristas: aqueles que insistem em rejeitar a fórmula de Tett por conta da simplicidade estão deixando de lado a longa divisão disciplinar entre o que Paul Stirling caracterizou como “Mandarins e Missionários”. Com sua crença de que a antropologia tem uma mensagem para todos — se ela pode articular o que é e com que efeito pode ser aplicada — Tett é sem dúvida uma missionária. Há uma pitada de irritação com a tendência mandarim de se refugiar na abstração, ofuscação ou “manutenção de fronteira” disciplinar. Muitas vezes, simplesmente não somos nossos melhores defensores. Se, como acho que Tett acredita, tendemos a esconder nossas habilidades, ideias e talentos, é hora de parar com isso.

A esse respeito, a mensagem de Tett vem em alto e bom som. Enfrente. Abrace os desafios abundantes que o mundo enfrenta. Colabore amplamente. Mostre como nossa perspectiva única pode fazer a diferença. Isso significa fazer mais do mesmo e fazer algumas coisas de forma diferente. Requer aprofundar ainda mais nosso apetite por colaboração e adicionar nossa perspectiva aos pontos de vista geralmente dominantes de outras disciplinas.

Que os problemas existem para nos envolvermos, é claro. Se pudermos ajudar as sociedades a ver o que elas tendem a ignorar, há, como ela mesma diz, um motivo para esperança.

Notas
1.
Anthro-Vision: A New Way to See in Business and Life. Gillian Tett. 2021, 304 pp. Avid Reader Press / Simon & Schuster

Referências

Anderson, Ken, Maria Bezaitis, Carl DiSalvo e Susan Faulkner. 2019. “A.I. Among Us: Agency in a World of Cameras and Recognition Systems”, 2019 EPIC Proceedings, pp 38–64, https://www.epicpeople.org/ai-among-us-agency-cameras-recognition-systems.

Hannerz, U. 1992. Cultural Complexity: Studies in the Social Organization of Meaning. Columbia University Press.

Mills, D. 2011. Have We Ever Taught Anthropology? A Hidden History of Disciplinary Pedagogy. Teaching Anthropology, Vol. 1 №1, DOI: https://doi.org/10.22582/ta.v1i1.252

Kinney, Meg e Hal Phillips. 2019. “Educating the Educators: An Entire Franchise Preschool System Embraces Ethnographic Insights to Improve Brand Experience and Drive Growth”, 2019 EPIC Proceedings, pp 500–512, https://www.epicpeople.org/educating-educators-franchise-preschool-system-embraces-ethnographic-insights.

Park, Rebekah, David Zax e Beth Goldberg. 2020. “Fighting Conspiracy Theories Online at Scale”, 2020 EPIC Proceedings, https://www.epicpeople.org/fighting-conspiracy-theories-online-scale.

Tett, G. 2009. Fool’s Gold: How Unrestrained Greed Corrupted a Dream, Shattered Global Markets and Unleashed a Catastrophe. Hachette.

Tett, G. 2015. The Silo Effect: The Peril of Expertise and the Promise of Breaking Down Barriers. Simon & Schuster.

Tett, G. 2021. Anthro-Vision: How Anthropology Can Explain Business and Life. Random House Business.

Escrito por Simon Roberts

Cofundador e Sócio da Stripe Partners e Presidente do EPIC Board. Sua carreira de vinte anos como antropólogo de negócios incluiu a fundação da primeira empresa dedicada à pesquisa etnográfica do Reino Unido, administrando um laboratório de inovação na Intel e sendo etnógrafo residente no iSociety, think tank de tecnologia. O trabalho de Simon foi coberto por Bloomberg, Financial Times, Wall Street Journal, BBC Radio 4 e Quartz. Seu livro sobre o conhecimento incorporado, O poder de não pensar: como nossos corpos aprendem e por que devemos confiar neles (tradução livre), foi publicado pela Bonnier em 2020. Simon é PhD em antropologia pela Universidade de Edimburgo. Leia os artigos EPIC de Simon sobre inteligência humana e artificial, etnografia e estratégia incorporada, e valor do conhecimento visceral.

Tradução de Rafaela Carvalho Santos
Voluntária no EPIC Brasil, que gentilmente doou seu tempo e tornou possível a publicação deste artigo.

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