Mobilidade urbana e “Consumidores Emergentes”
por LAURA SCHEIBER, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, participante do Comitê de Artigos do EPIC2016, Curadora de Etnografia/Consumidores Emergentes
Por diversas décadas, “Emergente” é um prefixo aplicado recorrentemente a entidades como mercados, nações, democracias, culturas e oportunidades de negócio. O termo tem sido usado para rotular praticamente qualquer coisa relacionada aos Outros “menos desenvolvidos” considerados “novos” para o universo do consumo orientado pelo mercado, especialmente por atores corporativos em busca de novos mercados e consumidores ao redor do mundo.
O trabalho nessa área vai desde pessoas atuando de baixo para cima na reparação do mercado de tecnologia da informação e comunicação em lugares como Dharavi, Mumbai, a iniciativas globais como a internet.org do Facebook, cujo objetivo é prover internet básica (considerada um direito humano) a cidadãos em situação de vulnerabilidade social em todo o mundo. Essas iniciativas abordam temas tão díspares quanto os universos dinâmicos do microempreendedorismo e das pequenas e médias empresas; os desejos de grupos de classe média em ascensão em contextos emergentes; ou as estratégias de atores próximos à “linha da pobreza”, que lutam por maior prosperidade sociocultural nas mesmas localidades.
A base da pirâmide econômica (BoP em inglês) foi uma poderosa predecessora (e um mantra de marketing) que o falecido C. K. Prahalad tornou atraente, indo além da ideologia desenvolvimentista, ao caracterizar todos os “segmentos” com agentes ativos, pelo menos em algum nível de consumo (e depois, inclusive, conceituados como potenciais parceiros de negócios e inovadores, não apenas consumidores). Porém, após o declínio da BoP, tanto como discurso como programa de pesquisa, quais lições, nós, como etnógrafos, podemos aprender da forma como esse conceito tentou considerar essa controversa categoria de consumidores, os quais são supostamente emergentes — mas a que? Se a BoP não tivesse tido mais as nossas contribuições teria ela se saído melhor ou apenas fracassado mais para frente?
Etnógrafos se reuniram em São Paulo, Brasil, para o EPIC2015; primeira vez que a conferência aconteceu no “Sul Global”. Uma impressionante palestra feita por Luciana Aguiar, Gerente de Parcerias no Setor Privado do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas no Brasil, destacou os difíceis desafios enfrentados pelas comunidades brasileiras e as importantes contribuições que etnógrafos podem fazer para a condução de negócios inclusivos e sustentáveis. De fato, as famosas favelas do Brasil são um dos bairros informais mais antigos do mundo e projetos inovadores nesses espaços urbanos desafiadores são exemplos de como a etnografia pode ajudar a apoiar as práticas na indústria que priorizem inclusão social. Neste artigo, exploro a mobilidade urbana nas favelas e convido todos a submeterem propostas sobre o seu trabalho na Trilha de Artigos “Etnografia/Consumidores emergentes” do EPIC2016.
Favelas
Definida de forma simples, as favelas são bairros residenciais ocupados predominantemente por famílias de baixa renda e com acesso mínimo aos serviços públicos (Arias, 2004). Muitos possuem pontos específicos de entrada, delineando as fronteiras do bairro e tornando possível monitorar quem entra e quem sai. No Rio de Janeiro, as favelas, historicamente, foram construídas de forma espontânea, sem autorização da prefeitura e, consequentemente, faltava acesso a uma infraestrutura adequada e a serviços públicos como escolas, centros de saúde, água encanada, eletricidade, ruas pavimentadas, serviços sanitários, segurança pública e espaços recreativos (Pino, 1997).
No século XX, ondas de famílias de baixa renda se mudaram de áreas rurais do Nordeste para cidades do Sudeste (Perlman, 2010). Estimuladas pela industrialização e por causas naturais, essas pessoas pobres se mudaram para áreas urbanas na esperança de uma vida melhor. O governo incentivou essa migração visto que esse movimento fornecia a mão-de-obra barata necessária para a alimentar a industrialização. Enquanto muitos habitantes se mudaram para áreas metropolitanas do Sudeste em busca de trabalho, muitos outros foram forçados a se mudar por proprietários de terra ou criadores de gado que receberam do governo subsídios fundiários, como uma forma de forçar as pessoas a se mudarem (Dimenstein, 1991).
Os migrantes foram realocados em áreas periféricas das cidades e tiveram que organizar suas próprias moradias e comunidades com pouco ou nenhum investimento dos setores público ou privado. Hoje, as favelas do Rio de Janeiro crescem mais rápido nas regiões periféricas mais pobres das zonas norte e oeste da cidade em comparação com a abastada zona sul, o que faz com que cada vez mais moradores fiquem fisicamente isolados das áreas centrais e de seus recursos. Favelas também são violentas; além da penetração e o violento controle das facções do tráfico de drogas, um alto e desproporcional número de cidadãos mortos pela polícia são jovens moradores da favela (Anistia Internacional, 2015).
Considere a experiência do José (pseudônimo) que cresceu em uma favela a quase trinta minutos do centro da cidade do Rio de Janeiro. José lembra de aulas canceladas na sua escola pública por causa dos conflitos entre traficantes de drogas que tornavam o caminho até a escola inseguro. O único ponto de entrada e saída da sua comunidade é protegido por soldados do tráfico fortemente armados e sair depois de escurecer pode ser perigoso; se ele tiver planos à noite fora da favela, ele apenas volta para sua comunidade depois do amanhecer.
Assim como a ameaça de violência física teve um impacto significativo na vida dele, o isolamento físico e social que ele enfrenta é igualmente difícil. José explicou que se ele quiser ir ao cinema, a um museu, fazer cursos de educação contínua ou aproveitar a praia, ele tem que pegar um ônibus até o centro da cidade. Muitos ônibus passam na avenida principal, logo na entrada comunidade, mas estão constantemente lotados e ele nunca sabe se a viagem vai demorar meia hora ou uma hora e meia. O metrô não vai até o seu lado da cidade. Uma vez no centro, ele sofre racismo e discriminação de maneira explícita. Moradores que vivem em assentamentos informais constante e diariamente enfrentam segregação e exclusão social (Perlman, 2010)
José quer desesperadamente frequentar uma universidade. Entretanto, ele não pode pagar os altos preços das universidades privadas e não conseguiu as notas necessárias no vestibular para entrar numa opção mais acessível como a universidade pública. Ele praticamente não conhece ninguém que saiba ou possa aconselhá-lo sobre educação de nível superior. Depois do ensino médio, ele conseguiu um emprego de tempo integral no centro da cidade como entregador onde ele ganha praticamente $200 (dólares) por mês. O custo do transporte consome quase um terço do seu salário.
Pobreza e Mobilidade
A história do José é uma oportunidade para explorar o conceito de mobilidade nos lugares que são comumente referidos como “mercados emergentes”. No sentido mais tradicional, o potencial de José de conseguir se locomover do ponto A para o ponto B é limitado e essa limitação física está ligada a limitações emoutras formas de mobilidade, incluindo a mobilidade social. Por exemplo, a educação formal de José, um mecanismo importante para ascender socioeconomicamente, é limitada quando a violência o impede de ir andando até a escola e, depois, por causa do custo da mensalidade. Porém, ainda que ele tivesse conseguido frequentar todas as aulas, as escolas como a sua, na periferia do Rio de Janeiro, possuem poucos recursos e têm uma qualidade de ensino pior do que as escolas mais ricas do centro da cidade. Estar fisicamente isolado do centro da cidade minimiza as possibilidades de acessar recursos intangíveis relacionados à mobilidade educacional como, por exemplo, o capital social em forma de mentores e de modelos a seguir. Depois, as chances de José seriam limitadas pela falta de trabalhos bem remunerados no seu bairro; trabalhando no centro da cidade, ele sofre os efeitos econômicos e psicológicos da discriminação enquanto o valor do transporte consome o seu salário.
Na medida em que conceituamos mobilidade nesse contexto, faz-se crítico mudar nosso olhar para ver que assim como José está socialmente isolado, também estão os cidadãos mais ricos do Rio. Eles perdem a oportunidade de interagir com pessoas de diferentes perfis socioeconômicos e de bairros informais, o que alimenta mal-entendidos, medo e discriminação. Eles — e frequentemente nós — falham em ver como o desenvolvimento urbano e as dinâmicas sociais dentro da cidade perpetuam a desigualdade.
Pesquisa no “Sul Global”
Conforme o conceito de mobilidade ganha mais nuances, a nossa percepção de lugar se torna cada vez mais relacional e conectada. O que isso significa para organizações dos setores público e privado que atuam no “sul global”? Como isso influencia o planejamento urbano? Como podemos não apenas abrir caminhos para que populações tradicionalmente marginalizadas consigam acessar recursos urbanos que estão no centro da cidade,mas também mudar processos sociais, estruturas e o desenvolvimento de produtos/serviços para que evoluam na periferia de modo a melhorar os mecanismos de mobilidade social? Quem deveria ser incluído nessa combinação para contribuir com a melhoria da qualidade de vida daqueles que moram em bairros informais, especificamente quando se trata de mobilidade?
É crítico que as organizações interessadas nos “consumidores emergentes” e em fazer negócio com o “sul global” incluam os moradores das comunidades pobres e informais nos processos de pesquisa e design. No Brasil, eles podem seguir o exemplo de grupos como Comunidades Catalisadoras (ComCat), fundado por Theresa Williamson. Theresa percebeu que muitos assentamentos urbanos informais usavam abordagens inovadoras localmente para endereçar problemas imediatos, mas a falta de mobilidade os impedia de compartilhar suas inovações ou de aprender com soluções de outras comunidades. A sua condição financeira lhe permitiu transitar entre as comunidades e, ironicamente, Theresa passou a saber mais sobre a abundância de projetos inovadores existentes nessas comunidades do que as próprias lideranças comunitárias que os orquestravam.
Theresa começou a derrubar as barreiras da mobilidade usando a tecnologia da internet para disseminar informação sobre projetos inovadores entre as lideranças comunitárias. Atualmente, a missão das Comunidades Catalisadoras é “criar modelos para integração efetiva entre assentamentos formais e informais nas cidades ao redor do mundo” para garantir que os moradores dos assentamentos informais sejam plenamente integrados à cidade. O programa Rioonwatch, por exemplo, aborda a evidente ausência de perspectivas e experiências dos moradores de favela nas grandes mídias e das fontes jornalísticas que contam histórias sobre as favelas do Rio. É um site de jornal no celular publicado em português e inglês que cobre os tópicos mais relevantes que impactam diretamente os assentamentos informais.
As visitas educacionais nas comunidades feitas pelas Comunidades Catalisadoras são também um recurso valioso para se obter uma perspectiva realista sobre os moradores dessas comunidades. Essas visitas educacionais customizadas conduzidas por lideranças comunitárias oferecem uma visão privilegiada do contexto único da comunidade para visitantes capazes de influenciar de forma mais ampla a opinião pública e as tendências — pesquisadores, estudantes, jornalistas e empreendedores. Os guias servem como informantes-chave inestimáveis já que possuem forte conexão com muitas pessoas da comunidade. Eles carregam uma riqueza de informações que vão desde dados demográficos gerais, passando pelo funcionamento político interno da comunidade, até onde ficam os principais “pontos quentes”.
Eu participei de uma visita à comunidade em 2009 que forneceu dados contextuais ricos para um estudo que eu estava conduzindo sobre empreendedores sociais à época.
Quais são as implicações para a etnografia no setor privado, especificamente em relação aos “consumidores emergentes” no “sul global”?
Entendimentos sutis de espaço e mobilidade revelam a complexidade das restrições enfrentadas por pessoas nas partes pobres e informais da sociedade. Mais importante ainda é que eles revelam as limitações das partes ricas, que falham em ver as causas sistêmicas da desigualdade e não conseguem acessar a importante perspectiva dos moradores pobres ou as soluções inovadoras e empreendedoras que eles já estão criando. Nesse sentido, podemos aprender muito com organizações como as Comunidades Catalisadoras e suas práticas:
- Comunidades Catalisadoras usam técnicas etnográficas e aproveitam a tecnologia para levar conscientização sobre as experiências vividas por moradores de bairros informais para as comunidades formais, assim como criam espaços virtuais que acolhem a troca de ideias e abrem a possibilidade de fazer um networking mais diverso socioeconomicamente.
2. Eles reúnem pessoas que naturalmente não se conheceriam. Em todos os programas, encorajam conexões entre cidadãos de espaços informais e espaços formais ao proporcionar acesso de fato aos recursos da comunidade, além de testemunhos, workshops, debates e visitas educacionais comunitárias.
3. A sua filosofia e abordagem servem de modelo não apenas para planejadores urbanos como também para a indústria dedicada em atingir um resultado financeiro duplo (lucro e impacto social positivo).
A pesquisa etnográfica tem um grande potencial em progredir nosso conhecimento sobre “consumidores emergentes’’, o que, finalmente, poderia encorajar práticas de negócio, processos e inovações socialmente inclusivas. Para contribuir com esse empolgante movimento, encorajo você a submeter seu artigo para o EPIC Brasil.
Referências
Arias, E. D. (2004). Faith in our neighbors: networks and social order in three Brazilian favelas. Latin American Politics and Society, 46(1), 1–38.
Dowdney, L. (2003). Children of the drug trade: A case study of children in organized crime violence in Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: A Viva Rio Publication.
Dimenstein, G. (1991). Brazil, war on children. London: Latin America Bureau.
Amnesty International (2015) Brazil: ‘Trigger happy’ military police kill hundreds as Rio prepares for Olympic countdown. Retrieved on August 8, 2015
from: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2015/08/brazil-trigger-happy-military-police kill-hundreds-as-rio-prepares-for-olympic-countdown/
Human Rights Watch. (1997). Police brutality in urban Brazil. New York City: Human Rights Watch.
Penglase, R. (2005). The shutdown of Rio de Janeiro: The poetics of drug trafficker violence. Anthropology Today, 21(5), 1–5.
Perlman, J. (1976). The myth of marginality. Berkeley: University of California Press.
Perlman, J. (2010). Favela: Four decades of living on the edge in Rio de Janeiro. New York: Oxford University Press.
Pino, J. (1997). Sources on the history of favelas of Rio de Janeiro. Latin American Research Review, 32 (3), 111–122.
United Nations Human Settlements Programme. (2003). The challenge of slums:Global report on human settlement. New York: UN-HABITAT.
Escrito por Laura Scheiber
Pesquisadora de pós-doutorado na Pontifícia Universidade Católica, Minas Gerais, Ela estuda inovação na educação com foco em melhor atender as necessidades dos alunos do século 21. Ela possui PhD pelo Teachers College, Columbia University. Seus interesses de pesquisa incluem juventude urbana marginalizada, aprendizado social, empreendedorismo social, sociologia e educação internacional. Laura também é membro do Comitê do Programa EPIC2016.
Tradução de Paulo Tiroli
Revisão da tradução por Bruno Nobre
Ambos voluntários no EPIC Brasil. Gentilmente doaram seu tempo e tornaram possível a publicação deste artigo.