Por que nenhuma empresa de futurismo antecipou uma pandemia em 2020?
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Reflexões sobre a conferência global do EPIC
(Essa foi uma pergunta que ressoou bastante durante painel da programação da conferência global do EPIC, comunidade de profissionais que praticam etnografia gerando impacto em negócios e organizações. Totalmente online em 2021, o evento aconteceu ao longo de duas semanas seguidas com o tema “Anticipation” e trouxe profissionais de todo o mundo compartilhando casos, participando de debates ou apresentando painéis. Eu fui uma das voluntárias do EPIC Brasil a acompanhar a programação.)
Essa é uma questão muito sincera e interessante porque é desconfortável para quem trabalha com pesquisa nestes tempos: por que não fomos capazes de antecipar a pandemia?
Não faltaram sinais. Muitos cientistas anunciavam há anos o risco de uma grave doença respiratória e, em 2014, até um discurso do então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, já trazia essa ameaça como algo a prever no horizonte. Então, como nenhum relatório apontou esse cenário?
Durante o debate no painel “The Future of Business in a Post-COVID Landscape”, os etnógrafos convidados chegaram à conclusão de que esse é um reflexo de não se considerar algumas fontes valiosas em trabalhos de pesquisa (trabalhos científicos, pesquisas acadêmicas e dados da sociedade são exemplos) ou de não se conseguir traduzir esses sinais em impactos cotidianos, em impactos para instituições e pessoas.
Após assistir a programação e rever minhas anotações do evento, sublinho: em qual direção estamos olhando?
Essa é uma pergunta-lembrete que levo comigo como principal aprendizado da conferência deste ano.
Ainda que esses temas ocupem boa parte de nossa energia e tempo nos encontros em projetos, a conferência do EPIC 2021 não foi sobre “frameworks”, inovação de forma isolada ou tecnologia de ponta sendo usada como técnica para pesquisa.
No momento em que a comunidade de etnógrafos pôde respirar, trocar experiências e olhar para seu trabalho nos últimos meses, o que emergiu foi principalmente um chamado para direção-intenção de olhar que recupera o essencial em etnografia ao mesmo tempo que nos provoca para uma atuação mais responsável e consciente.
Nas minhas notas, 8 falas do EPIC que compõem esse chamado:
- É fundamental zelar pelo rigor técnico para que nossos trabalhos possam traduzir com sinceridade o passado, o presente e o futuro.
- Observar o não dito, a exceção e o espontâneo continua sendo a base da criação de metodologias alternativas e criativas porque implica em espaço-tempo para o essencialmente humano.
- Setor público, setor privado e academia estão lidando com problemas de pesquisa muito similares, logo, podemos considerar um olhar mais abrangente para os dilemas da sociedade em busca de soluções e métodos realmente efetivos.
- É importante desenhar formas de interação em etnografia que considerem também o contexto emocional e psicológico das pessoas pesquisadoras e pesquisadas. Principalmente em um ambiente global de traumas coletivos.
- Precisamos nos dedicar a imaginar e a influenciar, por meio do fazer etnográfico, futuros mais justos para mais pessoas. E que mais pessoas se enxerguem nesses cenários positivos.
- Além das esferas tecnológica, ambiental, econômica, social e política, já é hora de acrescentarmos a camada INCLUSÃO nas nossas leituras de cenários: quem estamos incluindo ou deixando de fora de um passado, presente ou futuro que mapeamos?
- Devemos criar condições estruturais (tempo, remuneração, acesso…) para que populações até então marginalizadas (indígenas, afrocentradas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, entre outras) imaginem os futuros. Muitas vezes estudadas a partir de olhar da carência, tais pessoas são potentes ao vislumbrar o porvir.
- Abrindo o horizonte do tempo para além dos meses a seguir, podemos perceber que estamos na era do “Long Covid” e não do Pós Covid: as próximas ondas do próprio Covid num fluxo pandemia-epidemia-endemia, as prováveis próximas doenças e a mudança climática tendem a nos manter em um constante ciclo de reflexões, riscos, restrições e transformações.
Após assistir a programação do EPIC 2021, fica a responsabilidade diante do papel de nosso trabalho em um mundo com tantos desafios, fica a inspiração por seguir mapeando e traduzindo possibilidades de vida ainda pouco consideradas.
Escrito por Mayra Fonseca
Mestre em Antropologia e Etnografia pela Universidad de Barcelona (Espanha), em mais de 21 anos de experiência, já atuou em todas as regiões do Brasil e LATAM contribuindo para diferentes projetos e instituições. A voluntária do EPIC Brasil é consultora independente, mentora, palestrante e professora.