Vozes, não dados: construindo conexões entre clientes e participantes da pesquisa
por MARIA CURY, ReD Associates
Camila sentou-se em seu sofá rosa desbotado, desenfaixou a atadura em torno da panturrilha e me mostrou um ferimento roxo, uma parte da pele em crosta e uma parte úmida. Sua filha Cecilia sentou na beirada de uma cadeira no canto, completando os vazios na história:
“Lembra que a gente tentou um gel que inflamou sua pele”
“A farmácia da rua nunca dá gaze suficiente”.
Na ReD Associates, nós frequentemente trabalhamos com grandes empresas da área da saúde que buscam abordagens mais centradas no paciente para o design e a estratégia de produtos e serviços. Nossos insights têm implicações sobre produto, embalagem, marketing, e programas que ajudam com a complacência do paciente. Neste projeto em que conheci Camila e Cecilia, tínhamos o objetivo de tornar os produtos para o tratamento de ferimentos úteis para mais pessoas ao entender como os pacientes cuidam de feridas crônicas em mercados emergentes.
Camila, uma paciente brasileira de 64 anos com úlcera venosa na perna, estava fazendo tudo “errado” do ponto de vista médico. Ela arriscou uma infecção ao colocar azeite de oliva na panturrilha, e disse:
“Sei que não deveria, mas é a única coisa que tira minha dor”
Usou gaze seca com fiapos que grudavam na úlcera; confiou em uma pomada de extrato de mamão que os médicos haviam desaconselhado por corroer a pele recém-cicatrizada.
O comportamento de Camila contradizia as teorias do nosso cliente sobre como os pacientes cuidam dos ferimentos: ela desenfaixava constantemente as bandagens para verificar a úlcera, ela acreditava que as feridas deveriam tomar ar ao sol, ela queria um coquetel de cremes. Ela também tinha suas próprias teorias sobre a vida com ferimentos crônicos Camila tinha diabetes, pressão alta e uma hérnia, mas passou mais tempo remoendo sua úlcera, um risco menos à sua vida, porque era a úlcera que a impedia de brincar com seus netos e visitar os amigos. Cuidar dos ferimentos não era uma rotina, mas um ritual meditativo que ela realizava todos os dias no mesmo sofá, assistindo aos mesmos programas de televisão. Camila e Cecilia cuidavam da úlcera juntas, e Camila falou com orgulho de quando deu o resto de sua pomada de extrato de mamão para curar o ferimento de uma amiga. O ferimento era tanto social quanto físico.
Em 2013, o antropólogo da saúde João Biehl publicou um artigo, “Etnografia no caminho da teoria”[1], argumentando que “através da interpretação etnográfica, a teorização própria das pessoas sobre suas condições pode vazar, animar e desafiar […] os universais filosóficos” (594). Etnografia significa contar as histórias de vidas humanas atuantes, inacabadas e auto reflexivas, sem diminuir suas vozes para satisfazer teorias, filosofias e duras verdades científicas (Biehl 2013: 577, 583). As corporações desenvolvem suas próprias teorias e verdades — por exemplo, como um ferimento deve ser tratado com base nos mais recentes avanços na medicina. Mas, como etnógrafos em contextos corporativos, ouvimos os participantes das pesquisas com a crença de que eles nos contam verdades humanas vividas, mesmo que entrem em conflito direto com as verdades descritas por instituições médicas.
Nós construímos nossos insights ao conectar as ideias e experiências dos nossos participantes da pesquisa . Quando voltamos do campo e analisamos os dados, os participantes começam a “conversar” entre si de maneiras que não seriam possíveis de outra forma. O insight que os ferimentos são sociais, por exemplo, surgiu não apenas do nosso tempo com Camila e Cecilia, mas de fazer conexões com todas as pessoas que conhecemos. Quando nós pedimos para falar com um paciente sobre seu ferimento, nós sempre falamos com o paciente e seu ente querido que sabia mais sobre o ferimento que o próprio paciente.
Ao apresentar nossa pesquisa para os clientes, muitas vezes nós nos preocupamos que as experiências dos participantes sejam negligenciadas como “evidência anedótica”. Camila estava tão distante do paciente ideal, suas experiências tão longe das normas estabelecidas de cuidado com o ferimento, que seria tentador, conveniente e seguro reduzir sua voz a um sussurro, talvez compartilhando apenas um insight genérico como “ferimentos são sociais”. Mas nós não vamos à pesquisa de campo coletar anedotas; nós vamos para coletar as teorias que as pessoas constroem para dar sentido às suas vidas — e essas teorias vêm em detalhes vívidos, na importância de sofás cor-de-rosa e extrato de mamão quando os observamos de perto.
Através do nosso trabalho, estamos encontrando maneiras de garantir que nossos clientes participem do processo de construção de conexões com os participantes, para começar a ver a relevância de suas histórias. O que foi enervante, a princípio, sobre esse estudo foi que demos acesso aos nossos clientes a nossas observações e “fieldnotes” do campo em um espaço digital. As observações se tornaram pegajosas; nossos clientes recontaram histórias particularmente surpreendentes (a sessão meditativa de limpeza dos ferimentos de Camila, por exemplo) como representações de verdades humanas (ferimentos criam rituais e intimidade, por exemplo). Quando nós trouxemos a riqueza de detalhes das vidas dos participantes para as reuniões do conselho e os workshops finais, os participantes já eram pessoas familiares, eram também mais vozes do que dados, com experiências tão verdadeiras e cheias de insights quanto análises estatísticas, resultados de grupos focais e questionários.
Camila está errada em aplicar azeite na ferida? De um ponto de vista médico e prescritivo, provavelmente sim. Mas ela está errada em perceber o cuidado de feridas como íntimo, ritualístico, atuante e social? Não, ela nos contou a verdade de sua experiência, uma verdade que afinal iluminou nossos clientes e os ajudou a reconsiderar a relevância do tratamento de ferimentos no dia a dia. Uma foto de Camila limpando sua úlcera em seu sofá rosa desbotado se tornou a imagem da nova campanha interna da empresa. A perspectiva de nosso cliente sobre pacientes com ferimentos crônicos passou de vê-los como passivos e desengajados no tratamento de feridas, para vê-los como ativos, sociais e buscando melhores cuidados para condições que dificultavam profundamente suas vidas. O novo objetivo da empresa é capacitar e apoiar os pacientes no gerenciamento proativo de suas feridas crônicas com a ajuda de seus entes queridos.
Meses após o término do projeto, nosso time de pesquisa recebeu um e-mail de nossos clientes:
“Estamos tentando rastrear Camila no Brasil. Podemos entrar em contato com ela?”
Eles queriam ter uma conversa de acompanhamento com ela. Mesmo uma empresa que sabia tudo sobre como tratar uma ferida tinha algo a aprender com um paciente que sabia tudo sobre viver com uma.
Notas
1. BIEHL, J. (2013), ETHNOGRAPHY IN THE WAY OF THEORY. Cultural Anthropology, 28: 573–597.
Escrito por Maria Cury
Maria Cury é sócia na ReD Associates, uma consultoria de inovação e estratégia aplicando ciências sociais e humanas em problemas de negócio. Ela conduziu pesquisas etnográficas para a ReD em vários países sobre tecnologia, cuidados de saúde, e bens de consumo. Se formou como antropóloga social na Universidade de Princeton e na Universidade de Oxford, concentrando seus estudos em antropologia visual, material e museológica.
Tradução de Bruno Nobre
Voluntário no EPIC Brasil, que gentilmente doou seu tempo e tornou possível a publicação deste artigo.
Revisão da tradução por Ariel Abonizio
Nosso agradecimento pelo seu tempo ;)